Reputação é uma coisa interessante.
Muitas vezes, a pessoa nem te conhece pessoalmente, mas já ouviu falar de você. Aí, quando te conhece ao vivo, já tem um perfil completo e sabe exatamente como falar contigo ou se portar na sua frente. Claro que nem sempre isso funciona, pois a reputação é apenas um verniz por cima de um monte de outros detalhes. Mas, ainda assim, ela sempre vai comandar o que as pessoas acham da gente.
Era uma vez um redator com décadas de experiência, que vamos chamar aqui de Silvio. Além de trabalhar na agência, Silvio era professor universitário, tinha mestrado e estava fazendo doutorado em Letras, ambos em universidades de ponta. Além de bem construídos e muito criativos, seus textos tinham uma característica imprescindível a todo redator ou escritor profissional: gramática impecável. Chegava a ser irritante, pois até no WhatsApp ele escrevia corretamente, sem vícios, nem abreviações.
Certo dia, Silvio estava em sua mesa, fazendo uma pesquisa para um conteúdo que precisava desenvolver até o final do dia, quando o revisor, que chamaremos aqui de Carlos, se aproximou todo sem graça, perguntando:
– Beleza, Silvio!? Cara… Eu tô aqui com uma dúvida. Será que você pode me ajudar?
Sempre prestativo, Silvio parou sua pesquisa, se levantou para conversar com Carlos.
– Grande Carlos! Cara, eu tô precisando de um chazinho. Vamos lá na cozinha pegar um comigo? Aí você me conta qual é a dúvida.
No caminho, Carlos começou a falar, um pouco encabulado:
– Sabe o que é? Eu tava revisando um texto aqui e me bateu uma dúvida: a palavra “anéis” tem acento?
Silvio parou de andar, olhou seriamente para Carlos e devolveu:
– Uai?! Claro que tem. É pegadinha, né!? – começando a dar risada.
– Não, cara. É sério. É que eu estava revisando um texto seu e a palavra anéis foi escrita sem acento. A Paulinha (atendimento da conta) tinha lido antes e também não falou nada. Até perguntei pra ela se tinha visto também, mas ela disse que deveria estar certo, afinal, você escreveu.
– Sério, cara?! Deixa eu ver aqui…
De fato, estava ali, a palavra errada, no meio do parágrafo, olhando para Silvio, zombeteira, apontando o dedo para ele, como se gritasse “A-há! Te peguei!”. Então, Carlos continuou:
– Olha, eu fiquei meio confuso, porque eu lembro que o acento caiu em algumas construções, como colmeia, ideia… Aí, bateu mesmo a dúvida. Pensei, “Bom, foi o Silvio que escreveu. Deve estar certo”. Mas eu resolvi conferir e vi que a regra para palavras como anéis e pastéis não tinha mudado.
Sem graça com o erro bobo que cometeu, mas com a maturidade dos mais de 20 anos como redator, Silvio respondeu:
– Putz, Carlos. Imperdoável, mesmo. Esse foi um texto que reescrevi umas dez vezes. Não justifica, admito. Infelizmente, no meio de um caminhão de textos diários, a gente acaba errando mesmo às vezes. Valeu pelo toque, meu amigo. E fique tranquilo. Pode apontar e corrigir, sem problemas. Vamos indo que eu preciso mesmo de um chazinho. Uma pergunta: tá rolando muito erro, por isso você veio me procurar?
– Não! Longe disso! Seu texto dá até raiva de revisar. Nunca tem nada pra corrigir. É que… mesmo depois de ter achado, continuei na dúvida. Afinal, a gente procurou na internet.
– “A gente”?
– É, cara! Eu entrei em pânico! Aí eu chamei o Luís e a Ju para me ajudarem. A Paulinha tava junto. Cada um procurou em sites diferentes. Todos dizendo que tem acento.
Sem entender muito aonde a conversa estava indo, Silvio olhou bem no fundo dos olhos do revisor e mandou:
– Carlos, não estou entendendo… Se você tinha achado a resposta pra sua dúvida, por que chamou um comitê?
– Silvio… Entenda: você escreve bem pra caramba. Em quatro anos de agência, eu nunca peguei um erro seu. De repente, aparece uma palavra diferente no seu texto e… Olha, não fica bravo, por favor, mas eu procurei no VOLP também.
– Caramba… A coisa foi grave mesmo. – e deu uma risada.
– Pára, Silvio. Tô falando sério. Eu ainda estou na dúvida. Tem certeza que tem acento mesmo?
– Claro que tem, Carlos. Pelo amor de Deus. Eu errei, meu amigo. Acontece. Vamos lá pegar meu chazinho…
– Não, cara… Eu não tenho tanta certeza assim. Eu mandei uma mensagem pra eles, inclusive.
– Eles quem, Carlos?
– Pra ABL.
– Você mandou uma mensagem para a Academia Brasileira de Letras perguntando se anéis tem acento?
– Não. Eu mandei questionando a grafia da palavra.
Sem entender se era brincadeira ou não, Silvio olhou mais sério ainda para Carlos.
– Carlos, eu errei. Tá tudo bem. Acontece. Achei divertida a brincadeira, inclusive. Mas agora eu preciso terminar minha pesquisa. Esse texto que eu tô cuidando é meio chatinho preciso entregar até o final do dia. Eu só vou pegar meu chazinho antes. ‘Té mais.
– Silvio, espera. Tem mais uma coisa. Um funcionário da ABL ligou aqui querendo falar contigo.
– Como é que é?
– Ele disse que foi seu aluno numa pós e que foi ele quem recebeu meu email.
– Como assim? Ele quer falar comigo exatamente sobre o que?
– É que a gente achou que seria interessante, a fim de sustentar o argumento, falar que foi você quem achou o erro no VOLP.
– Erro no VOLP? Tá maluco, Carlos?
– Sim! Só pode estar errado, Silvio. Aí, como os sites se baseiam nele, todo mundo errou também.
– Carlos, eu escrevi errado. Corrige aí e bola pra frente. Eu já superei. Fica tranquilo. Acontece. Deixa eu pegar meu chaz…
Carlos se pôs na frente de Silvio e, calmamente, apontou para a sala de reuniões.
– Eu transferi a ligação pra sala de reuniões e nós todos estamos lá para ouvir você falar com ele no viva-voz.
– “Nós todos”? – desta vez, Silvio estava branco e com os olhos arregalados.
– É… todo mundo tá revoltado com a ABL e quer garantir que a regra seja cumprida.
– Regra…?
– Olha, entra lá e fala com o cara. Ele disse que ficou na dúvida também, principalmente quando soube que foi você que escreveu. Parece que você revisou o TCC dele na pós e que foi elogiado pelos membros da Academia. Pelo jeito, ele vai encaminhar a petição ao presidente da ABL, mas ele quer ler antes pra você.
– Ler pra mim, por que? Que petição é essa?
– Ah! Ele fez uma petição online. Já temos mais de três milhões de assinaturas, apenas em 40 minutos! Ele só tá com medo de ter algum erro e quer que você corrija…
– É o que?
Quando se deu conta, Silvio estava na entrada da sala de reuniões, que estava apinhada de gente. Não só os funcionários da agência, mas o povo dos escritórios vizinhos. Assim que entrou, todos bateram palmas e aos gritos de “Tamo junto”, o empurraram até a cadeira mais próxima do aparelho de telefone. Assim que se fez silêncio, Silvio se sentou à frente do aparelho e, gaguejando de nervoso, falou:
– Alô!? Quem fala?
Devido à qualidade do alto-falante, a voz saiu um pouco metalizada do aparelho, mas era efusiva.
– Puxa vida! Professor Silvio! Que honra! Olha, já tá tudo certinho. Não deixaremos mais uma dessas passar. Eu não sou membro da ABL, mas enquanto funcionário, me sinto na obrigação de ser um dos guardiões da língua. E o senhor não vai acreditar quem estava passando na frente da minha mesa enquanto eu lia o manifesto de agravo.
Tonto e sem conseguir parar de olhar para o aparelho preto à sua frente, Silvio balbucia:
– Manifesto…
– Isso! – responde a voz metalizada – Sabe quem tá aqui do meu lado? O pre-si-den-te da ABL!
– Você tá dizendo que o Merval Pe…
Uma voz um pouco mais grave, com sotaque carioca, interrompe pelo aparelho a frase de Silvio.
– Meu querido Professor Silvio! Que honra estar falando contigo, ainda que remotamente. Quero, antes de mais nada, em nome de toda Academia Brasileira de Letras, pedir minhas mais humildes escusas pelo erro grosseiro cometido por nós. Quero de antemão garantir que medidas estão sendo tomadas para a pronta substituição do verbete errado. Sentimos muitíssimo pelo inconveniente e espero que nosso requerimento encaminhado ao Colégio Doutoral Tordesilhas em Linguagens surta efeito em todos os países lusófonos. O senhor acha que precisamos tomar mais alguma atitude, talvez mais incisiva?
Silvio estava ainda mais pálido, de olhos arregalados, estático e apertando com força os braços da cadeira com as mãos. Depois de alguns segundos, conseguiu fechar a boca, olhou para Carlos, que permaneceu fielmente ao seu lado, e disse:
– Acho que vou querer um whisky no lugar do chazinho.